Preterição em Concursos Públicos: A Transformação da Expectativa em Direito à Nomeação
- Rafael Souza

- 10 de nov.
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1. Introdução
A jornada para a aprovação em um concurso público no Brasil é, para milhões de cidadãos, um projeto de vida que envolve anos de dedicação, estudo aprofundado e considerável investimento pessoal e financeiro. A busca pela estabilidade, pela remuneração digna e, acima de tudo, pela oportunidade de servir à sociedade por meio de um cargo efetivo, culmina na aprovação, um momento de intensa satisfação e esperança.
Contudo, entre a publicação do resultado final e a tão sonhada posse, pode surgir um obstáculo frustrante e, muitas vezes, ilegal: a preterição. Este fenômeno ocorre quando a Administração Pública, por meio de atos comissivos ou omissivos, desrespeita a ordem de classificação ou a própria existência de candidatos aprovados e aguardando nomeação, violando princípios basilares que regem o acesso aos cargos públicos.
O presente artigo, elaborado com a expertise de um advogado especialista em concurso público, tem como objetivo aprofundar o conceito de preterição em suas diversas modalidades, analisar as balizas estabelecidas pela jurisprudência, especialmente pelo Supremo Tribunal Federal, e orientar os candidatos sobre como identificar e combater essa ilegalidade, transformando o que era uma mera expectativa em um direito subjetivo à nomeação.
A compreensão deste tema é fundamental, pois garante que o mérito, aferido por meio do concurso público, prevaleça sobre a discricionariedade arbitrária e o descumprimento das regras do certame. Para navegar com segurança por essa complexa área do Direito Administrativo, o auxílio de um advogado especializado em concurso público é frequentemente indispensável para a correta defesa dos direitos do candidato.
2. Investidura por Concursos Públicos
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em seu artigo 37, inciso II, estabelece o concurso público de provas ou de provas e títulos como a porta de entrada por excelência para a investidura em cargo ou emprego público. Esta exigência não é uma mera formalidade burocrática; ela é a materialização de princípios constitucionais fundamentais que estruturam o Estado Democrático de Direito e a própria Administração Pública.
O princípio da isonomia, ou igualdade, é o mais evidente, assegurando que todos os cidadãos que preencham os requisitos legais possam competir em pé de igualdade por uma vaga no serviço público, sem privilégios ou perseguições. Atrelado a ele, o princípio da impessoalidade veda que a Administração se valha de critérios subjetivos, como simpatias pessoais ou afiliações políticas, para o preenchimento de seus quadros, garantindo que a escolha recaia sobre aquele que demonstrou maior capacidade técnica.
O princípio da moralidade administrativa exige um comportamento ético e de boa-fé por parte do gestor público, que deve zelar pela lisura do processo e pelo respeito às regras por ele mesmo estabelecidas no edital. Por fim, o princípio da eficiência é concretizado ao selecionar os candidatos mais aptos e qualificados, o que, em tese, resulta na prestação de um serviço público de maior qualidade para a sociedade. Nesse contexto, o edital do concurso público assume a força de "lei entre as partes", vinculando tanto os candidatos quanto a Administração Pública.
Quando o edital prevê um número determinado de vagas, consolida-se o entendimento de que os candidatos aprovados e classificados dentro desse número possuem não uma mera expectativa, mas um direito subjetivo à nomeação durante o prazo de validade do certame. Para os aprovados fora do número de vagas, que compõem o chamado "cadastro de reserva", a situação inicial é de mera expectativa de direito, a qual, como veremos, pode ser convolada em direito subjetivo diante de situações específicas de preterição.
3. Preterição em Concurso Público
A preterição é o ato ilegal praticado pela Administração Pública que consiste em ignorar, postergar ou desrespeitar a ordem de classificação de um concurso público válido, ou a própria lista de aprovados, para nomear outra pessoa ou para preencher a vaga de forma precária, demonstrando a necessidade do serviço. Essa conduta administrativa representa uma quebra da confiança depositada pelo candidato no certame e uma afronta direta aos princípios da impessoalidade, moralidade e boa-fé. Quando a preterição é configurada, o Poder Judiciário tem o dever de intervir para corrigir a ilegalidade e restabelecer o direito do candidato lesado.
A consequência jurídica primordial da constatação da preterição é a convolação da expectativa de direito do candidato aprovado (especialmente aquele em cadastro de reserva) em um direito subjetivo líquido e certo à nomeação. Identificar a ocorrência de uma preterição exige uma análise cuidadosa dos atos da Administração, sendo uma tarefa que frequentemente demanda a orientação de um advogado especialista em concurso público.
3.1. O que é a preterição?
Em sua essência, a preterição pode ser definida como o ato de deixar de lado, de forma indevida, um candidato aprovado em concurso público que possui direito ou expectativa prioritária de nomeação. É a quebra da ordem de preferência estabelecida pelo resultado do certame. A Administração Pública, embora dotada de discricionariedade para avaliar a conveniência e a oportunidade de prover seus cargos, não possui uma liberdade absoluta. Seus atos devem ser motivados e pautados pela legalidade e pelo interesse público.
Quando a Administração demonstra, por meio de um comportamento expresso ou tácito, que existe a necessidade de preencher determinado cargo e, ao mesmo tempo, ignora os candidatos aprovados que aguardam na fila, ela age com desvio de finalidade e de forma arbitrária. Essa arbitrariedade é o cerne da preterição. O reconhecimento judicial dessa prática não significa uma indevida interferência do Judiciário na gestão administrativa, mas sim o controle da legalidade dos atos administrativos, garantindo que a Constituição e as regras do edital sejam rigorosamente observadas. Portanto, a preterição é a chave que abre a porta para o reconhecimento do direito à nomeação para além das vagas inicialmente previstas.
3.2. Inobservância da ordem classificatória
A forma mais flagrante e incontestável de preterição ocorre quando a Administração Pública desrespeita a ordem de classificação dos aprovados no concurso público. Trata-se de uma violação direta à regra mais básica de qualquer certame meritocrático: o candidato mais bem classificado deve ser nomeado antes do menos classificado. Essa situação pode se manifestar de diversas maneiras, como a nomeação de um candidato em 10º lugar quando o 9º, o 8º e o 7º ainda não foram convocados para o mesmo cargo e localidade, sem qualquer justificativa plausível, como a desistência dos candidatos anteriores ou o não cumprimento de requisitos de posse. Tal prática viola frontalmente não apenas o edital, mas também o princípio da isonomia. O
Supremo Tribunal Federal há muito consolidou seu entendimento sobre o tema, inclusive por meio do verbete sumular nº 15, que estipula o direito à nomeação do candidato aprovado quando o cargo é preenchido sem a devida observância da classificação. Nesse cenário, o direito do candidato preterido é considerado líquido e certo, pois a prova da ilegalidade é documental e de fácil constatação, bastando comparar a lista de classificação com o ato de nomeação publicado em diário oficial. Para o candidato que se depara com essa situação, a assessoria de um advogado especializado em concurso público pode ser decisiva para a rápida impetração de um Mandado de Segurança, visando anular o ato ilegal e garantir sua imediata nomeação.
3.3. Abertura de novo concurso
Uma situação mais complexa que pode configurar preterição é a abertura de um novo concurso público para o mesmo cargo, enquanto ainda há um certame anterior com candidatos aprovados em cadastro de reserva e dentro do seu prazo de validade. A simples publicação de um novo edital, por si só, não gera automaticamente o direito à nomeação para os aprovados do concurso anterior. A Administração Pública possui a prerrogativa de avaliar a conveniência de realizar um novo processo seletivo em vez de prorrogar o antigo ou convocar o cadastro de reserva.
Contudo, essa discricionariedade encontra limites na boa-fé e na vedação ao comportamento contraditório. A preterição se caracteriza quando a abertura do novo concurso vem acompanhada de uma demonstração inequívoca por parte da Administração da necessidade premente e inadiável de preencher as vagas. Se, por exemplo, o novo edital oferece um número expressivo de vagas e a Administração justifica sua abertura com a urgência na recomposição do quadro de pessoal, fica evidente a contradição em não convocar os candidatos já aprovados e aptos do concurso ainda válido.
Esse comportamento revela uma intenção arbitrária e imotivada de ignorar a lista de aprovados existente, configurando a preterição e, consequentemente, fazendo nascer o direito subjetivo à nomeação para os candidatos do certame anterior, na estrita ordem de classificação, até o limite das vagas que se demonstrou serem necessárias.
3.4. Contratação de terceirizados e temporários
Talvez a mais recorrente e ardilosa forma de preterição seja a contratação de pessoal a título precário — seja por meio de servidores temporários, terceirização de serviços ou designação de comissionados — para exercer as mesmas atribuições do cargo para o qual existe um concurso público válido com candidatos aprovados em espera. Essa prática representa um verdadeiro drible na exigência constitucional do concurso público. Ao optar por uma contratação precária, a Administração Pública manifesta de forma inequívoca a existência da vaga e a necessidade do serviço.
É um comportamento do Poder Público que diz, nas entrelinhas, "eu preciso deste trabalho, mas não vou nomear o candidato que estudou, foi aprovado e está na fila". Tal conduta configura um claro desvio de finalidade, pois utiliza instrumentos legais destinados a situações excepcionais e temporárias (como a contratação temporária para atender a necessidade de excepcional interesse público, prevista no art. 37, IX, da CF) para suprir uma demanda permanente, que deveria ser satisfeita pelo provimento de um cargo efetivo.
Quando um candidato aprovado comprova que, durante a validade do seu concurso público, a Administração contratou terceiros para realizar as mesmas funções do seu cargo, a jurisprudência é pacífica em reconhecer a ocorrência de preterição e o seu direito subjetivo à nomeação. O desafio para o candidato, muitas vezes, é produzir essa prova, tarefa na qual a expertise de um advogado especializado em concurso público é fundamental, utilizando-se de ferramentas como a Lei de Acesso à Informação e a análise de portais de transparência.
4. Tema de repercussão geral 784 do STF
O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 837.311/PI, estabeleceu a tese de repercussão geral (Tema 784), que se tornou a principal diretriz para a análise de casos de preterição envolvendo candidatos aprovados em cadastro de reserva. A decisão representou um marco, equilibrando a discricionariedade administrativa com a proteção da confiança do candidato e a força normativa do concurso público. A ementa do julgado é autoexplicativa e merece citação integral:
EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. TEMA 784 DO PLENÁRIO VIRTUAL. CONTROVÉRSIA SOBRE O DIREITO SUBJETIVO À NOMEAÇÃO DE CANDIDATOS APROVADOS ALÉM DO NÚMERO DE VAGAS PREVISTAS NO EDITAL DE CONCURSO PÚBLICO NO CASO DE SURGIMENTO DE NOVAS VAGAS DURANTE O PRAZO DE VALIDADE DO CERTAME. MERA EXPECTATIVA DE DIREITO À NOMEAÇÃO. ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. SITUAÇÕES EXCEPCIONAIS. IN CASU, A ABERTURA DE NOVO CONCURSO PÚBLICO FOI ACOMPANHADA DA DEMONSTRAÇÃO INEQUÍVOCA DA NECESSIDADE PREMENTE E INADIÁVEL DE PROVIMENTO DOS CARGOS. INTERPRETAÇÃO DO ART. 37, IV, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DE 1988. ARBÍTRIO. PRETERIÇÃO. CONVOLAÇÃO EXCEPCIONAL DA MERA EXPECTATIVA EM DIREITO SUBJETIVO À NOMEAÇÃO. PRINCÍPIOS DA EFICIÊNCIA, BOA-FÉ, MORALIDADE, IMPESSOALIDADE E DA PROTEÇÃO DA CONFIANÇA. FORÇA NORMATIVA DO CONCURSO PÚBLICO. INTERESSE DA SOCIEDADE. RESPEITO À ORDEM DE APROVAÇÃO. ACÓRDÃO RECORRIDO EM SINTONIA COM A TESE ORA DELIMITADA. RECURSO EXTRAORDINÁRIO A QUE SE NEGA PROVIMENTO. 1. O postulado do concurso público traduz-se na necessidade essencial de o Estado conferir efetividade a diversos princípios constitucionais, corolários do merit system, dentre eles o de que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza (CRFB/88, art. 5º, caput). 2. O edital do concurso com número específico de vagas, uma vez publicado, faz exsurgir um dever de nomeação para a própria Administração e um direito à nomeação titularizado pelo candidato aprovado dentro desse número de vagas. Precedente do Plenário: RE 598.099 - RG, Relator Min. Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, DJe 03-10-2011. 3. O Estado Democrático de Direito republicano impõe à Administração Pública que exerça sua discricionariedade entrincheirada não, apenas, pela sua avaliação unilateral a respeito da conveniência e oportunidade de um ato, mas, sobretudo, pelos direitos fundamentais e demais normas constitucionais em um ambiente de perene diálogo com a sociedade. 4. O Poder Judiciário não deve atuar como “Administrador Positivo”, de modo a aniquilar o espaço decisório de titularidade do administrador para decidir sobre o que é melhor para a Administração: se a convocação dos últimos colocados de concurso público na validade ou a dos primeiros aprovados em um novo concurso. Essa escolha é legítima e, ressalvadas as hipóteses de abuso, não encontra obstáculo em qualquer preceito constitucional. 5. Consectariamente, é cediço que a Administração Pública possui discricionariedade para, observadas as normas constitucionais, prover as vagas da maneira que melhor convier para o interesse da coletividade, como verbi gratia, ocorre quando, em função de razões orçamentárias, os cargos vagos só possam ser providos em um futuro distante, ou, até mesmo, que sejam extintos, na hipótese de restar caracterizado que não mais serão necessários. 6. A publicação de novo edital de concurso público ou o surgimento de novas vagas durante a validade de outro anteriormente realizado não caracteriza, por si só, a necessidade de provimento imediato dos cargos. É que, a despeito da vacância dos cargos e da publicação do novo edital durante a validade do concurso, podem surgir circunstâncias e legítimas razões de interesse público que justifiquem a inocorrência da nomeação no curto prazo, de modo a obstaculizar eventual pretensão de reconhecimento do direito subjetivo à nomeação dos aprovados em colocação além do número de vagas. Nesse contexto, a Administração Pública detém a prerrogativa de realizar a escolha entre a prorrogação de um concurso público que esteja na validade ou a realização de novo certame. 7. A tese objetiva assentada em sede desta repercussão geral é a de que o surgimento de novas vagas ou a abertura de novo concurso para o mesmo cargo, durante o prazo de validade do certame anterior, não gera automaticamente o direito à nomeação dos candidatos aprovados fora das vagas previstas no edital, ressalvadas as hipóteses de preterição arbitrária e imotivada por parte da administração, caracterizadas por comportamento tácito ou expresso do Poder Público capaz de revelar a inequívoca necessidade de nomeação do aprovado durante o período de validade do certame, a ser demonstrada de forma cabal pelo candidato. Assim, a discricionariedade da Administração quanto à convocação de aprovados em concurso público fica reduzida ao patamar zero (Ermessensreduzierung auf Null), fazendo exsurgir o direito subjetivo à nomeação, verbi gratia, nas seguintes hipóteses excepcionais: i) Quando a aprovação ocorrer dentro do número de vagas dentro do edital (RE 598.099); ii) Quando houver preterição na nomeação por não observância da ordem de classificação (Súmula 15 do STF); iii) Quando surgirem novas vagas, ou for aberto novo concurso durante a validade do certame anterior, e ocorrer a preterição de candidatos aprovados fora das vagas de forma arbitrária e imotivada por parte da administração nos termos acima. 8. In casu, reconhece-se, excepcionalmente, o direito subjetivo à nomeação aos candidatos devidamente aprovados no concurso público, pois houve, dentro da validade do processo seletivo e, também, logo após expirado o referido prazo, manifestações inequívocas da Administração piauiense acerca da existência de vagas e, sobretudo, da necessidade de chamamento de novos Defensores Públicos para o Estado. 9. Recurso Extraordinário a que se nega provimento. (RE 837311, Relator(a): LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 09-12-2015, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-072 DIVULG 15-04-2016 PUBLIC 18-04-2016)
A análise do Tema 784 revela que a regra geral para o candidato em cadastro de reserva é a mera expectativa de direito. No entanto, o STF cravou que essa expectativa se convola em direito subjetivo quando houver uma preterição "arbitrária e imotivada" por parte da Administração. O ponto crucial é a exigência de que o candidato demonstre "de forma cabal" a "inequívoca necessidade de nomeação". Isso significa que não basta a simples vacância de cargos ou a contratação de um temporário; é preciso construir um conjunto probatório robusto que evidencie a conduta arbitrária do ente público.
5. Tema de Repercussão geral nº. 683 do STF
Anos após a fixação do Tema 784, o Supremo Tribunal Federal foi novamente instado a se manifestar sobre os limites do direito à nomeação, desta feita para esclarecer um ponto temporal crucial: a preterição deve ocorrer durante a validade do concurso público? A resposta veio com o julgamento do Recurso Extraordinário nº 766.304/RS, que deu origem ao Tema 683, cuja ementa é a seguinte:
EMENTA RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPERCUSSÃO GERAL. DIREITO ADMINISTRATIVO. CONCURSO PÚBLICO. CANDIDATO APROVADO FORA DAS VAGAS PREVISTAS NO EDITAL. ALEGADA PRETERIÇÃO OCORRIDA APÓS A VIGÊNCIA DO CERTAME. AUSÊNCIA DE DIREITO SUBJETIVO À NOMEAÇÃO. I CASO EM EXAME 1. Recurso extraordinário interposto pelo Estado do Rio Grande do Sul, com repercussão geral (Tema 683), em que postula a reforma do acórdão da Turma Recursal da Fazenda Pública dos Juizados Especiais Cíveis do Estado do Rio Grande do Sul, que concluiu que as contratações temporárias realizadas após o encerramento do prazo de certame importavam na existência de vagas disponíveis, conferindo, assim, direito subjetivo à nomeação da recorrida. 2. Preterição que não ocorreu no período de vigência do certame. II - QUESTÃO EM DISCUSSÃO 3. Analisa-se a possibilidade de o candidato pleitear, em juízo, o reconhecimento do direito à nomeação, sob o argumento de preterição ocorrida após o prazo de validade do concurso. III - RAZÕES DE DECIDIR 4. Tese do Tema 784/STF: “O surgimento de novas vagas ou a abertura de novo concurso para o mesmo cargo, durante o prazo de validade do certame anterior, não gera automaticamente o direito à nomeação dos candidatos aprovados fora das vagas previstas no edital, ressalvadas as hipóteses de preterição arbitrária e imotivada por parte da administração, caracterizada por comportamento tácito ou expresso do Poder Público capaz de revelar a inequívoca necessidade de nomeação do aprovado durante o período de validade do certame, a ser demonstrada de forma cabal pelo candidato. Assim, o direito subjetivo à nomeação do candidato aprovado em concurso público exsurge nas seguintes hipóteses: I – Quando a aprovação ocorrer dentro do número de vagas dentro do edital; II – Quando houver preterição na nomeação por não observância da ordem de classificação; III – Quando surgirem novas vagas, ou for aberto novo concurso durante a validade do certame anterior, e ocorrer a preterição de candidatos de forma arbitrária e imotivada por parte da administração nos termos acima”. 5. As contratações temporárias efetuadas após o fim do prazo de validade do concurso não implicam preterição nem acarretam o direito à nomeação. 6. A alegada preterição ocorreu após o término do prazo de validade do concurso público. Desse modo, não há direito subjetivo à nomeação. IV - DISPOSITIVO E TESE 7. Recurso extraordinário provido para julgar improcedente o pedido inicial formalizado, tendo em vista que a preterição de candidato aprovado fora das vagas previstas no edital deve ocorrer dentro do prazo de vigência do certame para que haja direito à nomeação. 8. Tese: A ação judicial visando ao reconhecimento do direito à nomeação de candidato aprovado fora das vagas previstas no edital (cadastro de reserva) deve ter por causa de pedir preterição ocorrida na vigência do certame.(RE 766304, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão: EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 02-05-2024, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-s/n DIVULG 02-08-2024 PUBLIC 05-08-2024)
O Tema 683 estabeleceu uma baliza temporal intransponível: o ato que configura a preterição (seja a contratação de temporários, a abertura de novo edital, etc.) deve ocorrer, necessariamente, dentro do prazo de validade do concurso público. Uma vez expirado o prazo de validade do certame, o vínculo da Administração com aquela lista de aprovados se extingue. Qualquer necessidade de pessoal que surja após essa data, mesmo que suprida por contratações precárias, não gera mais qualquer direito para os candidatos daquele concurso expirado. Esta tese é de fundamental importância, pois delimita o campo de atuação do candidato e do seu advogado especialista em concurso público, que devem estar atentos para que a causa de pedir da ação judicial esteja fundamentada em fatos ocorridos durante a vigência do certame.
6. Precedentes importantes dos Tribunais
A aplicação das teses firmadas pelo STF pode ser observada em diversos julgados dos tribunais pátrios, que detalham e solidificam o entendimento sobre a preterição em casos concretos. A seguir, apresentamos algumas decisões relevantes que ilustram como o Judiciário tem protegido o direito dos candidatos.
O Superior Tribunal de Justiça (STJ), em um caso paradigmático sobre a desistência de candidatos mais bem classificados, decidiu:
ADMINISTRATIVO. AGRAVO INTERNO NO RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA. CONCURSO PÚBLICO. CANDIDATA APROVADA FORA DO NÚMERO DE VAGAS . DESISTÊNCIA DE CANDIDATO MELHOR CLASSIFICADO, PASSANDO A IMPETRANTE A FIGURAR DENTRO DAS VAGAS PREVISTAS NO EDITAL. DIREITO À NOMEAÇÃO. PRETERIÇÃO CONFIGURADA. 1 . A jurisprudência do STJ firmou-se no sentido de que, "havendo desistência de candidatos melhor classificados, fazendo com que os seguintes passem a constar dentro do número de vagas, a expectativa de direito se convola em direito líquido e certo, garantindo o direito a vaga disputada" (RMS n. 55.667/TO, relator Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 12/12/2017, DJe de 19/12/2017). 2 . Tal entendimento se aplica inclusive quando surgem novas vagas além daquelas previstas no edital do concurso público e a administração pública manifesta, por ato inequívoco, a necessidade do preenchimento dessas vagas. No caso, a convocação de 5 (cinco) candidatos em vez de 3 (três) como previsto originalmente no edital demonstra essa necessidade. 3. Desse modo, existindo prova pré-constituída de preterição arbitrária e imotivada por parte da administração, fica caracterizada a ofensa ao direito líquido e certo à nomeação da parte impetrante . 4. Agravo interno a que se nega provimento.(STJ - AgInt no RMS: 63868 MG 2020/0159897-7, Relator.: Ministro OG FERNANDES, Data de Julgamento: 19/04/2022, T2 - SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJe 26/04/2022)
O Tribunal de Justiça do Mato Grosso, ao analisar um caso de contratação temporária em detrimento de candidata aprovada em primeiro lugar, ratificou a configuração da preterição:
REEXAME NECESSÁRIO - MANDADO DE SEGURANÇA - CONCURSO PÚBLICO MUNICIPAL - ODONTOLOGO - CANDIDATO APROVADA EM PRIMEIRO LUGAR NO CONCURSO - CONTRATAÇÕES TEMPORÁRIAS COMPROVADAS NO PRAZO DE VALIDADE DO CONCURSO - CARÁTER PRECÁRIO - PRETERIÇÃO CONFIGURADA - DIREITO LÍQUIDO E CERTO VIOLADO - SEGURANÇA CONCEDIDA - SENTENÇA RATIFICADA. O candidato classificado em concurso público, quando a Administração se vale da contratação de servidores temporários, tem o direito líquido e certo à nomeação, por ficar demonstrada a preterição dos aprovados em concurso público. Uma vez publicado o edital do concurso com número específico de vagas, o ato da Administração que declara os candidatos aprovados no certame cria um dever de nomeação para a própria Administração e, portanto, um direito à nomeação titularizado pelo candidato aprovado dentro desse número de vagas.(TJ-MT - REMESSA NECESSÁRIA CÍVEL: 10005838320178110003 MT, Relator.: GILBERTO LOPES BUSSIKI, Data de Julgamento: 15/07/2020, Primeira Câmara de Direito Público e Coletivo, Data de Publicação: 17/07/2020)
Na mesma linha, o Tribunal de Justiça do Amazonas reconheceu o desvio de finalidade em contratação precária:
MANDADO DE SEGURANÇA. CONCURSO PÚBLICO. CANDIDATOS APROVADOS FORA DO NÚMERO DE VAGAS. AUSÊNCIA DE NOMEAÇÃO . CONTRATAÇÃO PRECÁRIA DE TEMPORÁRIOS DURANTE A VIGÊNCIA DO CERTAME. PRETERIÇÃO CONFIGURADA. CONVERSÃO DA EXPECTATIVA DE DIREITO EM DIREITO LÍQUIDO E CERTO. EXISTÊNCIA DE VAGAS A SEREM PREENCHIDAS . RES TEMPORÁRIOS. SEGURANÇA CONCEDIDA EM HARMONIA COM PARECER MINISTERIAL. - O Supremo Tribunal Federal possui entendimento pacífico no sentido de que a ocupação em caráter precário, por comissão, terceirização ou contratação temporária, para o exercício das mesmas atribuições do cargo para o qual promovera o concurso público, configura desvio de finalidade, caracterizando burla à exigência constitucional do concurso público, o que gera direito à nomeação para o candidato aprovado fora do número de vagas previsto no edital (Precedente RE 733.029/MA) - Segurança concedida em harmonia com parecer Ministerial . (TJ-AM - MS: 40065159720208040000 AM 4006515-97.2020.8.04 .0000, Relator.: Anselmo Chíxaro, Data de Julgamento: 16/07/2021, Câmaras Reunidas, Data de Publicação: 16/07/2021)
O Tribunal de Justiça do Paraná também confirmou que a abertura de processo seletivo para temporários para a mesma função do cargo em concurso público com cadastro de reserva configura preterição:
APELAÇÃO CÍVEL. CONCURSO PÚBLICO PARA O CARGO DE PROFESSOR DE ENSINO INFANTIL. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA. PRINCÍPIO DA FUNGIBILIDADE RECURSAL . INTERPOSIÇÃO DE RECURSO INOMINADO. RECEBIMENTO COMO APELAÇÃO CÍVEL. REQUISITOS DE ADMISSIBILIDADE DEVIDAMENTE PREENCHIDOS. FORMAÇÃO DE CADASTRO RESERVA . ABERTURA DE PROCESSO SELETIVO PARA CONTRATAÇÃO TEMPORÁRIA PARA CARGO EFETIVO. PRETERIÇÃO CONFIGURADA. CARGO DE IDÊNTICA ATRIBUIÇÃO. MERA EXPECTATIVA DE DIREITO QUE SE CONVOLA EM DIREITO SUBJETIVO À NOMEAÇÃO . PRECEDENTES DOS SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. SENTENÇA CONFIRMADA. RECURSO DE APELAÇÃO CONHECIDO E NÃO PROVIDO. (TJ-PR 0002776-59 .2022.8.16.0105 Loanda, Relator.: substituto marcelo wallbach silva, Data de Julgamento: 25/03/2024, 5ª Câmara Cível, Data de Publicação: 25/03/2024)
De forma similar, o Tribunal de Justiça de Goiás entendeu pela configuração da preterição quando a necessidade transitória da administração para a contratação temporária não é comprovada:
Ementa: Apelação Cível. Mandado de Segurança. Concurso Público. I . Candidata aprovada em cadastro de reserva. Nomeação. Mera expectativa de direito. A aprovação em concurso público para formação de cadastro de reserva gera mera expectativa de direito ao candidato, competindo à Administração Pública decidir acerca da conveniência e oportunidade em prover os cargos que porventura fiquem disponíveis durante a validade do certame, somente se convolando em direito subjetivo a sua expectativa de direito quando houver preterição ilegal . (RE 837.311/PI ? Tema 784 do STF). II. Contratação temporária . Edital de Credenciamento. Necessidades transitórias da administração não comprovadas. Desvio de finalidade. Preterição configurada . Direito subjetivo à nomeação. Segurança concedida. A contratação precária de servidores temporários, no prazo de validade do certame, para desempenharem funções inerentes ao cargo para o qual a impetrante foi aprovada caracteriza preterição da candidata aprovada no concurso público, nascendo deste fato o direito subjetivo da impetrante em assumir a vaga. Apelação conhecida e provida . Sentença reformada. (TJ-GO - Apelação Cível: 53069616120228090174 SENADOR CANEDO, Relator.: Des(a). ANA CRISTINA RIBEIRO PETERNELLA FRANÇA, Senador Canedo - Vara de Fazendas Públicas, Data de Publicação: (S/R) DJ)
Por fim, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em juízo de retratação para adequação ao Tema 784 do STF, manteve seu acórdão que reconhecia a preterição pela contratação temporária:
JUÍZO DE RETRATAÇÃO. CONCURSO PÚBLICO. AGENTE EDUCACIONAL II. EDITAL Nº 01/2014 . ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. ANÁLISE DE JUÍZO DE RETRATAÇÃO. TEMA 784 DO STF. PRETERIÇÃO CONFIGURADA . CONTRATAÇÕES TEMPORÁRIAS PARA O MESMO CARGO DURANTE A VIGÊNCIA DO CERTAME. DIREITO SUBJETIVO À NOMEAÇÃO. TESE FIXADA NO IUJ N.º 71008814360 . MANUTENÇÃO DO ACÓRDÃO. (Embargos de Declaração Cível, Nº 71010587376, Segunda Turma Recursal da Fazenda Pública, Turmas Recursais, Relator.: Eduardo Ernesto Lucas Almada, Julgado em: 16-06-2025) (TJ-RS - Embargos de Declaração: 00000000071010587376 PORTO ALEGRE, Relator: Eduardo Ernesto Lucas Almada, Data de Julgamento: 16/06/2025, Segunda Turma Recursal da Fazenda Pública, Data de Publicação: 06/08/2025)
7. Ação judicial para reconhecer a preterição e requerer o direito subjetivo a nomeação
O candidato que se sente lesado por um ato de preterição deve buscar a tutela do Poder Judiciário para ver seu direito garantido. O primeiro passo é reunir toda a documentação comprobatória da ilegalidade. Essa documentação geralmente inclui: o edital do concurso público; a publicação da homologação do resultado final com a lista de classificação; os atos de nomeação de outros candidatos que desrespeitaram a ordem classificatória; ou, nos casos mais complexos, as provas da contratação de temporários ou da abertura de novo concurso.
A obtenção dessas provas pode ser um desafio, sendo crucial a utilização de pedidos via Lei de Acesso à Informação (LAI) e a consulta a portais de transparência e diários oficiais. É neste ponto que a atuação de um advogado especialista em concurso público se mostra mais valiosa, pois este profissional possui a técnica e a experiência necessárias para identificar os atos ilegais e para instruir o processo com as provas adequadas.
Dependendo do caso, a medida judicial cabível pode ser um Mandado de Segurança, caso o direito seja líquido e certo e as provas pré-constituídas, ou uma Ação Ordinária com pedido de tutela de urgência, quando há necessidade de uma dilação probatória mais aprofundada. Em ambos os casos, o objetivo é o mesmo: obter uma ordem judicial que determine à Administração Pública que proceda à nomeação e posse do candidato preterido.
8. Conclusão
A trajetória do concursando é marcada pela perseverança e pela crença na meritocracia como instrumento de justiça e ascensão social. O concurso público é a promessa constitucional de que o acesso aos cargos públicos se dará de forma isonômica, impessoal e eficiente. A preterição, em qualquer de suas formas, representa uma grave quebra dessa promessa, um ato de deslealdade da Administração Pública para com o cidadão que confiou nas regras do jogo.
Conforme demonstrado, a jurisprudência pátria, liderada pelo Supremo Tribunal Federal, tem atuado de forma contundente para coibir tais arbitrariedades, estabelecendo critérios claros para que a expectativa de direito dos aprovados, especialmente em cadastro de reserva, se transforme em um direito subjetivo à nomeação. A configuração da preterição por desrespeito à ordem de classificação, por abertura de novo certame com demonstração de necessidade, ou pela contratação de pessoal a título precário, são situações que demandam uma resposta firme do ordenamento jurídico. Contudo, o ônus de provar a ilegalidade recai sobre o candidato. Por isso, ao se deparar com indícios de preterição, é fundamental que o candidato não desista de seu direito. A busca por orientação jurídica qualificada é o caminho mais seguro e eficaz.
Um advogado especializado em concurso público poderá analisar a viabilidade da demanda, coletar as provas necessárias e defender o direito à nomeação perante o Judiciário. No escritório Rafael Souza Advocacia, compreendemos a profundidade desse desafio e a importância de cada aprovação, e estamos preparados para lutar pela efetivação do seu direito, garantindo que o mérito conquistado com tanto esforço seja devidamente reconhecido e respeitado.
Rafael Costa de Souza
Advogado especialista em concurso público
Mestre em Direito Constitucional pela UFMG
OAB/MG 147.808





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