STJ decide que não homologação de autodeclaração racial pela comissão de heteroidentificação não elimina candidato da ampla concorrência
- Rafael Souza
- 17 de dez. de 2024
- 6 min de leitura

Introdução
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) em recente julgamento reformou decisão de tribunal regional que havia excluído um candidato de um concurso público em razão da não homologação de sua autodeclaração racial. A decisão trouxe uma importante interpretação da Lei nº 12.990/2014, que regulamenta a reserva de vagas para negros em concursos públicos, e reafirmou a necessidade de assegurar o direito do candidato de continuar concorrendo às vagas de ampla concorrência, caso sua autodeclaração não seja confirmada.
Neste artigo, vamos analisar o caso em profundidade, abordando o contexto fático, a questão jurídica em debate, as razões de decidir do STJ e o impacto dessa decisão para os candidatos que participam de concursos públicos em todo o Brasil.
O contexto fático: como o caso chegou ao STJ?
O caso envolveu um candidato ao processo seletivo da Escola Preparatória de Cadetes do Ar (EPCAR), uma instituição militar de ensino que realiza concursos públicos anualmente. Durante o certame, o candidato optou por concorrer às vagas reservadas a negros, autodeclarando-se pessoa parda no ato de inscrição.
Conforme as regras do edital, a autodeclaração foi submetida a um procedimento de heteroidentificação, um processo complementar de verificação para confirmar a autodeclaração racial dos candidatos. Esse procedimento visa coibir fraudes nas cotas raciais, utilizando critérios fenotípicos para verificar se o candidato efetivamente se enquadra como pessoa preta ou parda.
A comissão responsável pela heteroidentificação não homologou a autodeclaração do candidato. Como consequência, ele foi eliminado do concurso público, inclusive das vagas de ampla concorrência, mesmo tendo obtido pontuação suficiente para ser aprovado nessa modalidade.
O fundamento da eliminação foi uma cláusula do edital que previa:
“Serão eliminados do concurso público os candidatos cujas autodeclarações não forem confirmadas em procedimento de heteroidentificação, ainda que tenham obtido nota suficiente para aprovação na ampla concorrência [...].”
Inconformado com sua exclusão, o candidato impetrou mandado de segurança, buscando ser reintegrado ao concurso e assegurar sua vaga na ampla concorrência, onde havia sido aprovado.
A decisão das instâncias inferiores
No primeiro grau, o pedido do candidato foi acolhido. O juiz concedeu a segurança, determinando que ele fosse matriculado no curso, sem qualquer discriminação, garantindo tratamento isonômico em todas as etapas.
Contudo, o Tribunal Regional Federal reformou a sentença em sede de remessa necessária. A Corte entendeu que a não confirmação da autodeclaração racial configurava motivo suficiente para a eliminação completa do certame, com fundamento na regra editalícia, que estava em harmonia com a Lei nº 12.990/2014.
Para o tribunal, ao se inscrever no concurso, o candidato aderiu às normas do edital e, portanto, deveria estar sujeito às suas sanções, mesmo que tivesse sido aprovado na ampla concorrência.
A questão jurídica: o que o STJ precisava decidir?
O ponto central da controvérsia envolvia a interpretação do parágrafo único do artigo 2º e do artigo 3º da Lei nº 12.990/2014:
Art. 2º, caput: permite que concorra às vagas reservadas o candidato que se autodeclarar preto ou pardo no ato de inscrição.
Parágrafo único do art. 2º: prevê a eliminação do candidato que prestar declaração falsa sobre sua condição racial.
Art. 3º: assegura que candidatos negros concorram concomitantemente às vagas reservadas e às vagas de ampla concorrência.
O STJ precisava analisar se a eliminação do candidato do certame por não homologação da autodeclaração poderia também afastá-lo da disputa pelas vagas da ampla concorrência.
Além disso, o Tribunal deveria esclarecer se a simples não homologação da autodeclaração poderia ser interpretada como declaração falsa, apta a justificar a eliminação.
As razões de decidir do STJ: interpretação da Lei nº 12.990/2014
O relator do recurso, Ministro Sérgio Kukina, conduziu a análise do caso com base nos princípios hermenêuticos e na interpretação sistemática da Lei nº 12.990/2014.
1. A sanção prevista no art. 2º, parágrafo único, é restritiva
O ministro destacou que o parágrafo único do art. 2º, ao prever a eliminação do candidato por declaração falsa, restringe essa sanção à disputa pelas vagas reservadas. A interpretação desse dispositivo deve ser feita em conjunto com o art. 3º, que garante aos candidatos negros o direito de concorrer simultaneamente às vagas de ampla concorrência.
Em outras palavras, a eliminação por declaração falsa não se estende à ampla concorrência, pois isso violaria a própria sistemática da lei, que assegura aos candidatos o direito de disputar ambas as modalidades.
2. Não homologação não é falsidade ideológica
Outro ponto fundamental do voto foi a distinção entre não homologação da autodeclaração e a declaração falsa.
O ministro ressaltou que a falsidade ideológica, prevista em normas penais e eleitorais, exige a presença do elemento subjetivo da má-fé, ou seja, a intenção deliberada de enganar ou fraudar. No caso em análise, a comissão de heteroidentificação apenas não confirmou a autodeclaração do candidato, sem apresentar qualquer indício de má-fé ou tentativa de fraude.
Assim, a simples discordância entre a percepção da comissão e a autodeclaração do candidato não pode ser presumida como má-fé.
3. O princípio da razoabilidade e a subjetividade racial
O relator também ponderou sobre a subjetividade das classificações raciais e a possibilidade de divergência de opiniões. O critério fenotípico utilizado pelas comissões de heteroidentificação nem sempre é isento de interpretações divergentes, especialmente em um país marcado pela miscigenação racial como o Brasil.
Por essa razão, é necessário aplicar o princípio da razoabilidade para evitar sanções desproporcionais que penalizem candidatos de forma excessiva.
4. A cláusula editalícia deve ser interpretada em harmonia com a lei
O edital do concurso previa a eliminação do candidato que não tivesse sua autodeclaração homologada, mesmo que aprovado na ampla concorrência. Entretanto, o STJ destacou que cláusulas editalícias não podem se sobrepor à lei nem ser interpretadas de forma isolada.
O item do edital, portanto, deve ser lido em conformidade com a Lei nº 12.990/2014, respeitando o direito do candidato de permanecer na ampla concorrência, desde que não haja prova inequívoca de falsidade ou má-fé.
O resultado do julgamento: a decisão do STJ
Ao final da análise, o STJ deu provimento ao recurso especial, reformando a decisão do Tribunal Regional Federal e restabelecendo a sentença que havia concedido a segurança ao candidato.
Com isso, o candidato foi reintegrado ao concurso público e teve assegurada sua classificação na ampla concorrência.
A decisão do STJ foi fundamentada nos seguintes pontos principais:
A sanção de eliminação prevista na Lei nº 12.990/2014 se aplica apenas às vagas reservadas e não afeta a disputa pelas vagas gerais.
A não homologação da autodeclaração não configura, por si só, declaração falsa, pois a má-fé não pode ser presumida.
O edital deve ser interpretado de forma harmônica com a lei, respeitando os direitos do candidato.
Impacto da decisão: o que muda para os concursos públicos?
A decisão do STJ representa um importante precedente para os concursos públicos que adotam procedimentos de heteroidentificação. Ela reforça a necessidade de uma interpretação razoável e proporcional das normas editalícias, evitando penalizações excessivas aos candidatos.
Além disso, o julgamento traz as seguintes implicações:
Segurança jurídica: Candidatos que tiverem sua autodeclaração não homologada têm o direito de permanecer na ampla concorrência, desde que não haja prova de má-fé.
Interpretação legal: A decisão delimita o alcance da sanção de eliminação, restringindo-a às vagas reservadas, em conformidade com a Lei nº 12.990/2014.
Equilíbrio racial: O julgamento reconhece a complexidade das classificações raciais no Brasil e a possibilidade de divergências legítimas nas análises fenotípicas.
Para os candidatos, essa decisão representa um avanço significativo na proteção de seus direitos e na garantia de isonomia nos concursos públicos.
Conclusão
O julgamento do STJ reforça a importância de respeitar os direitos dos candidatos que participam dos concursos públicos, especialmente aqueles que concorrem às vagas reservadas. A interpretação harmônica da Lei nº 12.990/2014 assegura que o candidato não seja penalizado indevidamente pela não homologação de sua autodeclaração, garantindo sua permanência na disputa pelas vagas de ampla concorrência.
O escritório Rafael Souza Advocacia, especializado em concursos públicos e questões de cotas raciais, permanece à disposição para auxiliar candidatos em situações semelhantes, oferecendo orientação jurídica especializada e garantindo a proteção de seus direitos.
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